sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

"O Chá do Noeme", de José Afonso Vieira

Zé Chibas.
Carrancudo, de cigarro de enrolar ao beiço, pau de amieiro entalado no antebraço, pastor de cabras, desde os 12. E já lá vão 40! 
Ele por ali anda, com 7 bichos cabrinos, magros, sebentos, e com as caganitas prezas nas patas traseiras, que fazem a vez de badalos. Apenas não chocalham.
Há um moinho ao longe, podre, velho, sem telhado e sem roda. Em vez de pão e moleiro, tem como companhia pedras caídas, telhas partidas, e silvas. 
É Janeiro, e um lençol branco percorre a veiga, rente ao verde acastanhado da erva.
Faz um frio seco.
As Silvas e as giestas fazem de raids a um caminho de terra batida, principal via da aldeia, no tempo do Rei D. Sancho. Que por aqui andou também. Não a guardar cabras, mas de mula, a delimitar o concelho da Guarda. Dizem. Não sei se é verdade.
O caminho, dado a antigas realezas, serve agora para as cabras, algumas vacas, ciclistas citadinos e teenagers endiabrados montados em mulas mecanicas.
Ainda serve.
Quem não serve são as águas do Noéme, que se colam e serpenteiam o caminho.
-  O Rio desta cor  só nas enxurradas.... desta cor só nas enxurradas ..e era quando as havia. – Vocifera o Zé Chibas, apagando a beata molhada com a ponta do pau de amieiro, na erva branca da geada.
- Anda cá,  só para veres.
Vou, mais obrigado, que por livre vontade.
Galgamos umas silvas, uns juncos, uma bosta de vaca a fumegar, e paramos ao pé da água, que corre branda, espumosa e gorda.
O Zé agacha-se e com a cova da mão leva a água ao meu nariz. – Cheira, cheira, e depois diz-me se tenho, ou não, razão.
Cheiro. Viro a cara para o lado. O odor é intenso. Uma mistura de tripas podres, químicos, curtumes, vísceras, carne putrefacta. Tudo banhado numa água de cor castanha avermelhada.
- Os filhos dum c..... Deviam chafurdar aqui e obrigá-los  a beber este cházinho! -  remata o Zé guardador de cabras e não de sonhos.
Pois…. digo eu.
O pastor afasta-se com passos longos e alavancados pelo cajado.
Olha o rio com um ar desafiador e impotente.
Junta-se ao rebanho.
Assobia.
Três cabritos e uma cabra com tetas ovais vão ter com ele.
Todos, olham-me como um estranho, apesar de já conhecer o Zé há muito tempo.
Do canto do olho vejo-o retirar uma garrafa de vinho do bolso do casaco e beber um trago, limpando os beiços à manga da camisa.
E, lá, ao longe, na neblina da veiga, enchendo os pulmões com bafo de cabra e de nevoeiro, elevando o cajado o Zé ainda grita:
- Eu ainda me amanho com o tintol, e as cabras, caralho?
Uma nuvem, amedrontada, afasta-se e deixa brilhar um sol ajaneirado, de cor de vaca jarmelista.
Desta vez, talvez por nojo, ou por respeito ao pastor, o sol não se amanhou com o Noeme.  

José Afonso Vieira

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Romance do Galo em três actos (O Testamento)

Acto 3 - O Testamento

Em cima do chafariz
Ouviu sentença o fanfarrão
Bem falante e vistoso como sempre
Lançou ainda último pregão:

"Ouvi vossas queixas
Razão tendes, povo da aldeia
Mas se falam todos ao mesmo tempo
Mais parece a minha capoeira"

"A sentença já ouvi,
Aceito, tranquilo vou morrer
Mas peço ao senhor juíz,
Que me deixe o Testamento ler"

"Aos poluidores do Noéme
Coxas e peito vou deixar
Cumpriram a vingança que prometi
Sem eu ter de trabalhar"

"Aos que mandam na Câmara
Deixo minhas penas vistosas
Os de agora e de antigamente
Para mim, foram almas caridosas"

"Aos senhores do Governo
Que no alto do poleiro o crime permitiram
Dou-lhes o pescoço e as patas
Mas não se esqueçam, que o povo traíram!"

"Os ovos da capoeira
Dou ao presidente da freguesia
Para que chateie os governantes
E continue a actuar com mestria"

"Aos jornalistas da Guarda
As unhas vou deixar
Para delas fazerem canetas
E o crime denunciar"

"Os miúdos vou deixar
Áquele rapaz do Rochoso
O problema não se resolve
Não interessa ser teimoso"

"Ao blogue Crónicas do Noéme
Já não tenho nada para dar
Despeço-me, povo valente
Podeis vir para me matar!"

"Já li o testamento
Pode terminar a sessão
Mas povo valente não vos esqueçais
De às vossas coisas, dar atenção!"

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Romance do Galo em três actos (O Castigo)

Acto 2 - O Castigo

Às mordomias da capoeira
O Galo estava habituado
De tanto correr encostou-se a um barroco
Pois já estava muito cansado.

Foi fácil aos caçadores
O fanfarrão apanhar
Não o mataram logo ali
Para na aldeia o julgar.

Montou-se debaixo da árvore
Um julgamento a valer
Juíz, testemunhas e povo
Todos ali, para o Galo abater.

Os pescadores da ribeira
Petisco deixaram de apanhar
Nem para eles, nem para o juíz
Nem para ao vigário levar.

As raparigas que à ribeira
Antes a roupa iam lavar
Queixaram-se desgostosas
Que deixaram de ter sítio p'ra namorar.

As rodas do moínho
Sem água corrente , não mais funcionaram
E os lavradores da aldeia
As vêgas deixaram de regar.

De tantas queixas haver
Em fúria estava a multidão
Vendo isso o velho juíz
Prontamente apresentou a decisão.

"Morra o Galo, morra o Galo!"
Ouvia-se o povo gritar,
"Se é culpado dos males da ribeira",
disse o juíz, "O Galo vamos matar!"

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Romance do Galo em três actos (O Crime)

Acto 1 - O Crime

Lá p'ros lados da ribeira
O Galo foi passear
Fanfarrão fora da capoeira
Bem alto começou a cantar.

Vistoso de penas brilhantes
A atenção logo chamou
Duma pequena galinha d'água
Que naquele instante logo se enamorou.

O pai da galinha d'água
Não aprovou a união
E ameaçou, p'ra quem quis ouvir
Depenar o charlatão.

O Galo sem maneiras
A galinha d'água foi raptar
Ao fugir da ribeira com ela
Um pregão deixou no ar:

"Na capoeira deixo galinha velha
E pintos por criar
Levo esta pequena comigo
E deste sítio me hei-de vingar!"

"Há-de morrer tudo à volta
A água preta há-de ficar
Do cheiro nem sequer falo
Vomito, só de pensar!"


Nota: Romance em três actos (Acto 1 - O Crime, Acto 2 - O Castigo, Acto 3 - O Testamento ) a publicar hoje, amanhã e depois, baseado nos romances antigos do Carnaval da região da Guarda.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Cimeiras

Portugal e Espanha discutiram gestão dos rios comuns numa reunião em Lisboa na passada segunda-feira, pode ler no site do Ministério do Ambiente.

"A Ministra portuguesa afirmou que a sua preocupação é que os planos de gestão das bacias hidrográficas comuns sejam «bem feitos, concertados com Espanha e que permitam uma gestão muito eficaz e muito cuidada dos recursos hídricos" - Louvável!

"Quer Portugal quer Espanha estão altamente comprometidos com a qualidade e com a quantidade de água que existe" - Louvável!

O que fica por dizer é que os organismos que tutelam os rios em Portugal e dependem do Ministério do Ambiente continuam a não tomar medidas de protecção, de facto, dos rios portugueses. Pequenos ou grandes. Em cimeiras e reuniões são apresentados grandes objectivos e de inegável interesse mas o dia-a-dia mostra que os mesmos ficam fechados nos mesmos salões ode foram declarados.

Neste caso em concreto, do crime que diariamente acontece no rio Noéme, nem se pode alegar desconhecimento: o Ministério foi questionado pelo grupo parlamentar do Partido Ecologista - Os Verdes. E houve resposta. Mas o problema continua.

O comprometimento com a qualidade da água que existe em Portugal é bem visível quando se passa junto ao rio. As descargas públicas efectuadas no Noéme são a face visível de anos e anos de comprometimento com a qualidade das águas em Portugal. Convido a senhora ministra a visitar o rio e a colocar na mesma frase as palavras "defesa da qualidade da água" e "compromisso" sem se envergonhar.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Não é partida de Carnaval


Monteperobolso (concelho de Almeida), 08 de Fevereiro de 2012. 
Fotos de António Monteiro.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

"Náiades, Vós que os Rios Habitais", de Luís de Camões

Náiades, vós que os rios habitais
Que os saudosos campos vão regando,
De meus olhos vereis estar manando
Outros que quase aos vossos são iguais.

Dríades, que com seta sempre andais
Os fugitivos cervos derribando,
Outros olhos vereis, que triunfando
Derribam corações, que valem mais.

Deixai logo as aljavas e águas frias,
E vinde, Ninfas belas, se quereis,
A ver como de uns olhos nascem mágoas.

Notareis como em vão passam os dias;
Mas em vão não vireis, porque achareis
Nos seus as setas, e nos meus as águas.

Luís de Camões

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O que fazer destas portagens

O imposto de circulação cobrado nas estradas que atravessam a Beira devia ser restituído às gentes da Beira. O pecúlio que os almoxarifes do nosso tempo retiram aos Beirões devia ser investido no desenvolvimento dos territórios atravessados.

Assim sendo, e puxando a brasa à sardinha dos que querem um rio Noéme despoluído, o dinheiro resultante das portagens cobradas nos troços da A23 que atravessam o concelho da Guarda devia ser usado para a requalificação do rio Noéme.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Maravilhas e recordes

O país está cheio de "maravilhas" e "recordes". Qualquer iniciativa que se queira apresentada como deve de ser ou é uma "maravilha" ou é "a maior de...". O marketing assim o obriga. Certa comunicação social gosta assim.

Desconfio sempre de algo que se apresente como "o maior de..." (geralmente do Mundo) sobretudo quando não se pode comprovar e se tem como objectivo iludir. É marketing preguiçoso apenas. Nada contra se, movidos por um exagerado e exacerbado bairrismo se enaltece algo que é nosso, sobretudo se facilmente pudermos ser desmentidos. Bem posso dizer (e digo!) que o rio Noéme é o maior do Mundo mas logo ali ao lado alguém dirá que o Côa é que é o maior do Mundo... ou o Tejo... ou o Nilo.

A moda das "maravilhas" parece não ter fim, elas são 7, 8 ou 9 e podem ser de tudo e mais alguma coisa. E se uma determinada região não tem maravilhas nacionais trata logo de fazer o seu próprio concurso para eleger as suas próprias maravilhas. Dirão os mais pessimistas que são formas de alienação. Dirão outros que são simplesmente patetices. É outra vez marketing preguiçoso apenas.

Outra forma de marketing (territorial dizem) preguiçoso de facto, é promover coisas absurdas. Iniciativas que certa comunicação social também gosta mas que para além de patéticas são absurdas também. Uma praia artificial com água salgada e tudo em Mangualde. Praia de água salgada em terra de montes e ribeiras. Um globo de neve artificial no coração da Guarda. Neve a fingir (podia ser esferovite) na terra da neve verdadeira. 

Dizem os especialistas que assim se conquistam minutos na televisão em horário nobre. Talvez, mas aparecer na televisão por patetices só pode provocar sorrisos embaraçados. E quem cá vem facilmente verifica que não há neve nem ribeiras limpas por muito que se vendam uma ou duas como verdadeiras maravilhas. E uma comunicação social que oculta os problemas, os mascara ou simplesmente os ignora não pode estar satisfeita do seu trabalho... ou então é marketing preguiçoso apenas.