O professor Ramiro Neves é coordenador do Mestrado Integrado em Engenharia do Ambiente do Instituto Superior Técnico e um dos maiores especialistas em recursos hídricos em Portugal. Esta é a primeira parte da conversa que tivemos sobre Rios.
Crónicas do Noéme: A quem pertencem os rios?
Prof. Ramiro Neves: Em termos de governança, os rios estão sob tutela da administração das regiões hidrográficas. Estas entidades têm autoridade sobre a água e portanto têm de criar mecanismos para que os rios se mantenham em bom estado.
Crónicas do Noéme: Qual é o estado da água dos rios portugueses?
Prof. Ramiro Neves: Na maioria dos casos está muito melhor do que num passado recente. Foi implementada a directiva do tratamento de águas residuais urbanas que retirou uma boa parte das descargas poluentes de origem urbana dos rios. O período definido para a implementação da directiva já expirou, no entanto sabemos que ainda há ETARs a serem construídas e ainda nos chegam notícias de rios poluídos aqui e ali.
Crónicas do Noéme: Essa directiva diz respeito aos efluentes domésticos… e os industriais? Devem ir para as ETARs ou quem produz os resíduos deve tratá-los dentro de sua casa?
Prof. Ramiro Neves: A responsabilidade do tratamento dos resíduos industriais é partilhada. As unidades industriais devem fazer um pré-tratamento que permita a descarga do efluente na ETAR juntamente com os resíduos de origem doméstica. Esse pré-tratamento deverá ser diferente conforme a origem dos resíduos e não podem ser directamente misturados com as águas de origem doméstica porque originaria um efluente muito difícil de tratar e consequentemente comprometer a eficiência das ETAR.
Crónicas do Noéme: Portanto está previsto que as unidades industriais encaminhem os seus resíduos para as ETARs domésticas mediante eventualmente o pagamento de taxas à semelhança do que acontece com os esgotos domésticos?
Prof. Ramiro Neves: Normalmente a rede de saneamento tem a chamada “licença de descarga”. Os resíduos domésticos são descarregados obrigatoriamente na ETAR e é também permitido às unidades industriais que encaminhem os seus resíduos para lá mediante certas condições, nomeadamente sobre a composição do efluente. O custo do saneamento é calculado por metro cúbico de esgoto e aparece na factura da água. Como é demasiado caro e financeiramente insustentável construir uma ETAR em cada fábrica e se o efluente não causar problemas se misturado com o efluente doméstico é encaminhado para lá. Cada autarquia decide que taxas aplicar.
Crónicas do Noéme: A legislação que existe é suficiente para proteger os nossos rios?
Prof. Ramiro Neves: É suficiente e é quase toda produzida nos gabinetes da União Europeia. Há uns ajustes aqui e ali mas sempre no sentido de acrescentar algo. A fiscalização existe mas por vezes é difícil produzir prova porque nem sempre os focos de poluição são permanentes. Outras vezes as leis não são cumpridas por falta de infra-estruturas físicas. Em Portugal há muitas ETARs construídas, existe boa legislação mas subsistem focos de poluição porque faltam colectores que liguem as fontes poluidoras às ETARs. O colector é por vezes a parte mais cara de todo o sistema.
Crónicas do Noéme: Um colector é uma canalização entre dois pontos: o poluidor e a ETAR?
Prof. Ramiro Neves: Exactamente. Um colector é uma rede de tubos que liga uma fonte de poluição a uma ETAR. Os colectores estão normalmente divididos em duas partes: o colector em alta e o colector em baixa. Exemplificando: existe uma rede de pequenos tubos que vão até às nossas casas. As nossas casas estão ligadas ao colector da nossa rua e posteriormente é ligado a um colector maior ainda. A distinção entre a rede em alta e a rede em baixa faz-se pelo caudal e não tem a ver com o tipo de efluente. O caudal está sempre a aumentar até chegar a uma ETAR. O sistema torna-se ainda mais complexo se houver vários locais dispersos. Os colectores em baixa são geralmente da responsabilidade das autarquias e os colectores em alta são da responsabilidade dos sistemas intermunicipais.
Crónicas do Noéme: As zonas industriais das cidades deviam ter ETAR própria?
Prof. Ramiro Neves: Se as redes tiverem sido bem feitas, a construção dos colectores foi planeada. O problema pode estar em fábricas isoladas onde seja muito difícil construir essa infra-estrutura. Nesses casos, deve existir uma bacia de retenção junto à unidade industrial onde são acumulados os efluentes produzidos e um sistema de transporte encarregue de os levar para a ETAR. Há semelhança do que fazia o carro da Câmara Municipal quando ia esvaziar as fossas sépticas domésticas.
Crónicas do Noéme: Mas nesses casos, é mais difícil ou é totalmente impossível tratar os efluentes?
Prof. Ramiro Neves: Às vezes pode ser impossível. É necessário calcular quantos metros cúbicos são produzidos por dia e saber o custo do transporte. Independentemente de tudo, não poderá nunca acontecer que produtos perigosos ou resíduos sejam descarregados directamente num rio.
Crónicas do Noéme: Um resíduo industrial pré-tratado pode ainda assim ser nocivo para o ambiente?
Prof. Ramiro Neves: Sim. Um sistema de tratamento de resíduos tem como finalidade a remoção do agente que é perigoso. Uma entidade qualquer torna-se poluente quando é descarregada numa quantidade tal que cause danos no meio receptor. Um pré-tratamento é uma “coisa” que pressupõe a existência de um tratamento a seguir. O pré-tratamento só seria solução se conseguisse reduzir a carga para um valor suficientemente baixo de modo que as concentrações das descargas no meio receptor não o pusessem em perigo. E se assim fosse não seria necessário transferi-lo para a ETAR. O tratamento aplicado deve ser o estritamente necessário e não ir para além dele.
Crónicas do Noéme: Não ir para além dele?...
Prof. Ramiro Neves: Há um conceito errado de quanto melhor for o tratamento melhor é para o ambiente: não é verdade. O próprio tratamento causa danos no ambiente. No mínimo em energia mas por vezes em produtos químicos também. Portanto cada entidade que trate química ou mecanicamente um efluente para além do necessário está a gastar energia (e consequentemente a emitir dióxido de carbono) ou a utilizar produtos químicos também eles nocivos ao meio ambiente. A arte está em conseguir o tratamento necessário e não mais do que isso.
Crónicas do Noéme: Como se atinge esse equilíbrio?
Prof. Ramiro Neves: A lei impõe limites à descarga. Por exemplo se impõe limites à descarga num determinado caudal e se o sistema for constituído por 10 fábricas o caudal descarregado no meio hídrico será o somatório do caudal produzido por cada uma das fábricas. A lei está bem intencionada mas nem sempre está correcta é preciso analisar caso a caso.
Crónicas do Noéme: Uma ETAR que funcione bem ainda repõe água poluída no meio hídrico?
Prof. Ramiro Neves: Não deveria. A água reposta não deve ter consequências no meio envolvente. O tratamento das ETARs retira três tipos de contaminantes: partículas (através do tratamento primário ou decantação), carga orgânica com bactérias (através do tratamento secundário e aqui a água já está transparente) e nutrientes minerais que se forem em excesso para o rio a cor da água passa a ser verde. O tratamento terciário é o mais caro. Descarregar num rio pequeno é muito diferente de descarregar num rio grande. Se o caudal do rio for pequeno é função da ETAR adaptar o seu caudal a esse rio para não haver problemas. A ETAR tem de conhecer o rio onde vai efectuar a descarga e fazê-lo em função dele. Uma ETAR que não funciona bem é apenas um tanque por onde passa o esgoto.
Crónicas do Noéme: Em termos técnicos como sabemos se o problema está resolvido?
Prof. Ramiro Neves: Temos de olhar para o meio receptor e verificar se há impactos negativos; se não houver então o tratamento é suficiente. Contudo poderia ser suficiente não cumprindo a lei ou não ser suficiente e cumprir a lei…
Crónicas do Noéme: Mas nesse caso torna-se complicado resolver este tipo de problemas… em Tribunal pode acontecer que os poluidores digam que cumprem a lei porque não excedem os limites legais de descarga previsto. E no entanto os rios estão poluídos…
Prof. Ramiro Neves: Este ponto resolve-se com recurso à Directiva Quadro da Água. A directiva de tratamento das águas residuais urbanas impõe normas às descargas. A Directiva Quadro da Água olha para o meio receptor e verifica se está em bom estado. É considerado em bom estado se existirem lá as espécies biológicas características daquele local. É assim que se sabe qual o efeito das várias descargas no meio hídrico.
Crónicas do Noéme: E quando os rios já estão poluídos há tantos anos que já não há memória de quais são as espécies características?
Prof. Ramiro Neves: Nesse caso estamos a falar de águas fortemente modificadas e pode não se saber já quais eram as espécies que lá existiam ou mesmo sabendo, poderá ser impossível voltar atrás. A poluição pode causar efeitos irrecuperáveis.
Crónicas do Noéme: Então esses rios estão condenados a não ter mais vida?
Prof. Ramiro Neves: Não. São rios diferentes mas não são rios condenados. Uma coisa é o rio não ter as espécies, outra completamente diferente é a água não estar poluída. Temos de olhar para as propriedades físico-químicas da água (se está turva, se não tem oxigénio, se tem compostos que não deveria ter, se cheira mal…). Mesmo que as águas já não estejam poluídas, os peixes que lá existiram podem já não gostar daquele sítio por diversos motivos: porque o rio já não tem o revestimento de fundo que tinha ou porque a velocidade da água é diferente… A Directiva Quadro da Água olha para o problema nesta perspectiva e o que exige é que cada Estado Membro da UE deve trabalhar no sentido de restituir as condições existentes nos rios antes da intervenção humana.
Caro conterrâneo:
ResponderEliminarParabéns pelo resumo da conversa que teve com o Prof. Ramiro Neves.
Finalmente alguém explica, de forma simples, como é timbre de quem conhece a matéria, toda a problemática do tratamento, do transporte a das descargas nos rios. Ficamos a saber que todos podem dizer que cumprem a lei no que se refere às suas obrigações mas que afinal o veredicto não será dado em função do que dizem mas sim do que provocam.
Isto é, no limite, a qualidade da água de um rio dirá se quem faz descargas cumpre ou não aquilo que legalmente está determinado. Quanto ao NOEMI não parece haver grandes dúvidas sobre este ponto.
Senhor Professor: As suas preocupações ambientais são naturalmente mais vastas e não se compadecem com pequenos pedaços de rios de dimensão reduzida. No entanto, será que o estudo deste rio (no que se refere à poluição que lhe injectam) não poderia ser tema de uma tese de um dos seus Mestrandos? É uma sugestão.
Aguardo a conclusão da conversa com o professor.
Obrigado Marcio.
JFernandes (Pailobo)