O  engenheiro Miguel Ferreira é administrador da empresa Águas do Zêzere e  Côa (ADZC) desde 2007. Esta é a primeira parte  da conversa que tivemos   no início do mês de Junho sobre o tratamento das águas residuais no  concelho da Guarda e a poluição do rio Noéme. 
Crónicas do Noéme: Como é feito o tratamento de águas residuais no concelho da Guarda?
Engº. Miguel Ferreira:  O concelho da Guarda tem três bacias hidrográficas: Zêzere, Douro e  Mondego. O rio Noéme desagua no rio Côa que por sua vez vai desaguar no  rio Douro na barragem do Pocinho. Uma grande parte das freguesias do  concelho despeja os seus resíduos numa das várias estações de tratamento  que descarregam no rio Noéme. A principal estação de tratamento de  águas residuais (ETAR) é a de S. Miguel que trata a generalidade dos  resíduos urbanos da Guarda, mas há outras nomeadamente na Quintazinha do  Mouratão, no Rochoso… têm tecnologias diferentes adequadas às  características do local onde se encontram.
Crónicas do Noéme: Qual o papel da ADZC e da Câmara Municipal da Guarda neste processo?
Engº. Miguel Ferreira:  Nós somos uma espécie de “grossistas” da água. Recebemos esgoto e  tratamos aquilo que os municípios nos entregam. Os municípios recolhem  nas redes de saneamento em baixa os esgotos da casa das pessoas e  colocam-no em emissários em alta ou em ETARs da ADZC. Nós não temos a  responsabilidade de tratar todas as águas residuais do concelho, por  exemplo a ETAR da Plataforma Logística (PLIE) pertence aos Serviços  Municipalizados de Águas e Saneamento (SMAS) da Guarda bem com algumas  povoações pequenas que se encontram fora do contrato de concessão. O  contrato de concessão deixa fora algumas situações porque não seria  economicamente viável ter 100% de tratamento de águas residuais em  sistemas multi-municipais.
Crónicas do Noéme: Na cidade da Guarda, só a ETAR de S. Miguel descarrega efluentes para o rio Noéme?
Engº. Miguel Ferreira:  A maior parte provém da ETAR de S. Miguel. A ETAR do Torrão deverá  despejar para um afluente do rio Noéme portanto vai lá ter  indirectamente.
Crónicas do Noéme: Que tratamentos são feitos na ETAR de S. Miguel?
Engº. Miguel Ferreira:  É uma ETAR com tratamento intensivo. Existem dois tipos de tratamentos:  o extensivo consome menos energia, menos reagentes e requer mais  espaço. É adequado a pequenas povoações e é realizado de forma natural  através do uso de plantas macrófitas de grande dimensão. As unidades  deste tipo requerem muito espaço e por isso só são viáveis em populações  até 500 habitantes. Por exemplo, a da Quintazinha do Mouratão ou do  Rochoso são deste tipo. O tratamento intensivo é feito à base de grandes  gastos energéticos, maquinaria e reagentes e é adequado ao tratamento  de resíduos de grandes populações. A ETAR de S. Miguel serve entre 40000  a 50000 habitantes. Esta ETAR tem duas linhas de tratamento: uma antiga  construída pelo SMAS anterior à gestão da ADZC e uma mais recente  construída em 2002/2003. As águas residuais passam por um tratamento  preliminar comum onde são retirados os sólidos, as areais e as gorduras  para não perturbar as fases seguintes do processo. Depois o efluente é  dividido pelas duas linhas onde são feitos os tratamentos primários e  secundários. A linha mais recente consome mais energia mas retira mais  azoto e fósforo. É uma necessidade que surgiu posteriormente. Apesar das  diferenças de funcionamento mantemos as duas linhas em funcionamento  porque a mais recente está perto da capacidade de tratamento para  conseguirmos o limite de descarga no rio determinado pela ARH Norte. 
Crónicas do Noéme: Como é que a ARH Norte determina as taxas de descarga?
Engº. Miguel Ferreira:  Esta entidade tem de zelar pela boa saúde das águas que estão sob sua  alçada. Existe legislação mas o que determina a taxa de descarga num rio  é a licença emitida pela ARH. Se o meio receptor tiver grande  capacidade o limite é o determinado pela lei; caso contrário esta  entidade determina caso a caso. Por exemplo, esta entidade classificou  recentemente a barragem do Pocinho como “área sensível” e por isso as  águas que vão para lá terão de ser tratadas de forma diferente. Dou  outro exemplo, se houver uma praia fluvial a seguir a uma zona de  descarga de uma ETAR então será necessário um tratamento terciário para  desinfectar a água de modo a que não cause danos à saúde. Na ETAR de S.  Miguel fazemos desinfecção de uma parte da efluente que produzimos para  aumentar o caudal dos riachos e lagoas que se encontram no Parque Urbano  do Rio Diz
Crónicas  do Noéme: Se não houvesse interferências externas a seguir ao ponto de  descarga da ETAR de S. Miguel poder-se-ia tomar banho no rio Noéme?
Engº. Miguel Ferreira:  Acreditando que a licença está bem passada obviamente poderia. O  problema é que existem mais focos poluidores para além da ETAR e o  estado do rio Noéme não será o mais adequado. A ARH deve monitorizar a  água do rio, isto está para além das nossas competências. Nós só  controlamos o estado do efluente que descarregamos no rio.
Crónicas do Noéme: Se houver uma avaria na ETAR qual é o plano de contingência?
Engº. Miguel Ferreira:  Temos redundância em todos os componentes do processo. É uma regra de  boa execução e de boa engenharia, o que torna o processo mais caro. Mas o  risco existe sempre. Apesar de termos geradores, se falhar a energia  eléctrica por um longo período de tempo a partir de certa altura o  tratamento fica comprometido e o efluente não sairia a cumprir os  limites da licença. Neste caso, somos obrigados a avisar de imediato a  ARH Norte e esta tem a capacidade de conhecer todos os utilizadores do  rio e avaliar as consequências. Nunca me lembro da ETAR de S. Miguel ter  uma avaria desta dimensão.
Crónicas do Noéme: Fala muitas vezes na parte económica. Quanto custa tratar os efluentes?
Engº. Miguel Ferreira:  Uma empresa é algo que só sobrevive se gerar receitas. O custo aqui tem  duas componentes: a parte da empresa e do município. O município tem a  rede de saneamento de recolha e os seus funcionários. Do lado da empresa  existe o custo de pagamento do empréstimo contraído e o custo de  manutenção (pessoal, energia, reagentes…). Tratar 1 metro cúbico de  efluente custa 90 cêntimos porque estamos numa área com povoações muito  dispersas, temos 187 ETARs nos 16 municípios abrangidos pelo contrato de  concessão e pouca população se comparado por exemplo com a Grande  Lisboa ou o Grande Porto. É impossível aqui reencaminhar os esgotos para  uma mega ETAR. Devido a estes factores fica mais caro.
Crónicas do Noéme: Existem aldeias que não têm esgotos tratados no concelho da Guarda?
Engº. Miguel Ferreira:  Ainda não concretizámos todo o plano. As ETARS já estão todas  construídas e a funcionar mas ainda estão a ser feitas ligações de  algumas aldeias a estas infra-estruturas. Quando as redes de saneamento  foram construídas há 20 ou 30 anos não tinham o objectivo de conduzir os  esgotos para uma ETAR. Foram feitas para retirar os esgotos do centro  da aldeia para uma fossa séptica. Ainda hoje encontramos fossas  comunitárias que não estão nas plantas e por isso com a colaboração do  SMAS vamos melhorando a rede.
Crónicas do Noéme: Nessa altura o trabalho não deveria ter sido feito de forma mais planeada?
Engº. Miguel Ferreira:  Não havia conhecimento. Daqui a 30 anos podemos chegar à conclusão que o  que fazemos hoje não é o mais adequado face a um paradigma que venha a  existir no futuro.
Crónicas  do Noéme: Estivemos anos sem tratamento nenhum, depois canalizámos de  forma caótica e poluímos rios e hoje andamos a limpar?
Engº. Miguel Ferreira:  Antigamente a água residual das casas era usada nos campos agrícolas e a  sua utilização foi sustentável durante séculos. A drenagem para uma  ETAR nem era hipótese. Abandonámos a agricultura e ficaram as águas  residuais.
Crónicas do Noéme: Como é feito o tratamento dos efluentes do Parque Industrial e da PLIE?
Engº. Miguel Ferreira:  A ADZC tem contrato de concessão para águas residuais de origem  doméstica podendo no entanto tratar também as águas industriais que  também afluem na mesma rede. Existe muitas vezes indústrias na malha  urbana e não seria economicamente viável dividir a rede em domésticos e  industriais. A PLIE tem ETAR.
Crónicas do Noéme: … e funciona?
Engº. Miguel Ferreira: Não sei, é do Município. 
Crónicas do Noéme: Qual a lógica que sustenta esta separação?
Engº. Miguel Ferreira:  Tem a ver com a relação entre as empresas e os fundos comunitários. A  ADZC tem acesso a fundos comunitários. A UE tem medo que exista  concorrência desleal entre países. Imaginemos que uma empresa não  tratava os seus efluentes e os colocava na rede. Os efluentes dessa rede  eram posteriormente tratados por uma ETAR paga com fundos comunitários.  Os custos da poluição passariam a estar repartidos por todos os  contribuintes europeus. Essa fábrica poderia produzir material mais  barato que uma fábrica na Alemanha ou na França que trate os seus  efluentes e por isso haveria concorrência desleal entre países da UE  patrocinada por dinheiros de todos nós. A filosofia da UE é a do  poluidor-pagador, ou seja, o custo final de uma caneta deve conter os  custos da poluição gerada no processo de fabrico.
 
 
 
 
 Mensagens
Mensagens
 
 
Sem comentários:
Enviar um comentário