terça-feira, 6 de agosto de 2019

“Um rio te espera", de Eugénio de Andrade

Estás só, e é de noite,
na cidade aberta ao vento leste. 
Há muita coisa que não sabes 
e é já tarde para perguntares. 
Mas tu já tens palavras que te bastem, 
as últimas, 
pálidas, pesadas, ó abandonado. 

Estás só 
e ao teu encontro vem 
a grande ponte sobre o rio. 
Olhas a água onde passam os barcos, 
escura, densa, rumorosa 
de lírios ou pássaros nocturnos. 

Por um momento esqueces 
a cidade e o seu comércio de fantasmas, 
a multidão atarefada em construir 
pequenos ataúdes para o desejo, 
a cidade onde cães devoram, 
com extrema piedade, 
crianças cintilantes 
e despidas. 

Olhas o rio 
como se fora o leito 
da tua infância: 
lembra-te da madressilva 
no muro do quintal, 
dos medronhos que colhias 
e deitavas fora, 
dos amigos a quem mandavas 
palavras inocentes 
que regressavam a sangrar, 
lembras-te da tua mãe 
que te esperava 
com os olhos molhados de alegria. 

Olhas a água, a ponte, 
os candeeiros, 
e outra vez a água; 
a água; 
água ou bosque; 
sombra pura 
nos grandes dias de verão. 

Estás só. 
Desolado e só. 
E é de noite.

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