O rio Noémi como elemento identitário
Há no concelho da Guarda um conjunto de aldeias que têm como elemento comum o rio Noéme. Este rio nasce em Vale de Estrela e junta-se ao Côa, no Jardo, no concelho de Almeida. “Poucos sabem qual é o rio da minha aldeia (...) E por isso porque pertence a menos gente, / É mais livre e maior o rio da minha aldeia”: este verso de Alberto Caeiro reflecte o sentimento que estas gentes nutrem pelo Noéme, ou, usando a expressão corrente, “a Ribeira!”. Este é o pequeno rio, de uma pequena terra, poluído por pequenas pessoas a cobertos dos pequenos poderes. Tudo começou na pré-história do saneamento básico da Guarda em que este curso de água se transformou no bacio da cidade, num tempo em que isto era prática em quase todo o lado em Portugal. Hoje, no Portugal moderno, passados milhões de euros da União Europeia investidos em infra-estruturas de tratamento de águas residuais, continua a ser o despejo da indústria local. Um problema que urge resolver, uma vergonha que urge reparar.
Nos questionários mandados realizar pelo Marquês de Pombal aos párocos de Portugal em 1758 (ficaram conhecidos na historiografia como Memórias Paroquiais) lemos o que era o Rio Noeime (ou nas palavras poéticas do pároco do Rochoso, Noémi, remetendo para a personagem bíblica). Resumindo o conteúdo dos diversos textos é de realçar o que em comum disseram os inquiridos: o rio Noéme tinha muitos moinhos em uso, onde se moía trigo e centeio; as suas margens eram cultivadas e nas suas margens havia predominância de amieiros e de salgueiros; havia peixes em abundância (bordalos, sardas e enguias) nas suas águas. O Noéme do século XVIII era o Noéme da década de 70 do século XX. As mesmas vivências, os mesmos usos, as mesmas características físicas. O rio calou-se a partir daí e deixaram de se ouvir os seus sons característicos: o coaxar das rãs, o cantar dos guarda-rios, o som dos motores de rega a puxar água, a água a bater nas mós dos moinhos. Dizia o vigário Alexandre da Silva Pereira nas Memórias Paroquiais: “os povos usam livremente as suas águas”. Nos dias de hoje o rio é destruído por alguns e este património é retirado a todos. Não são livres as pessoas de usufruir e de viver o seu rio.
Mas afinal quanto vale um rio? O progresso, que na realidade trouxe qualidade de vida às populações e melhorou as condições sanitárias das nossas aldeias, também destruiu mais do que devia a paisagem. Os últimos trinta anos causaram um prejuízo irreparável nos terrenos, nas ribeiras, na biodiversidade... há coisas que não conseguiremos recuperar. Não falo sequer no património imaterial, nas tradições, na memória, na cultura que desaparece a cada idoso que parte. Este progresso que nos andam a vender fez com que a população das aldeias atravessadas pelo rio Noéme, nos três concelhos, diminuísse de 4274 habitantes (dados retirados dos Censos 2001) para 3786 (Censos 2011). Quanto tempo faltará para que este território se torne um deserto? Que estórias contarão estas pedras? Ultrapassámos todos os limites: barragens, torres eólicas (plantadas sem critérios que não sejam os economicistas nos nossos montes), alcatrão e mais alcatrão, urbanizações em cima dos nossos ribeiros e invadindo reservas naturais e agrícolas. As gerações mais novas já não caçarão gambozinos, sentirão o cheiro a alecrim e bela-luz, beberão água das nascentes, aprenderão a nadar nas ribeiras ou saberão sequer o nome das árvores.
James Salzman, um especialista norte-americano em políticas ambientais, sustenta que “a maior ameaça ao desenvolvimento é a escassez da água potável”. Temos a água potável como um bem garantido, de tal forma que até nos damos ao luxo de destruir este recurso. Rajandra Singh é um activista ambiental indiano. Numa região pobre, despovoada e com um rio seco algures na Índia, pôs em prática as técnicas antigas de armazenamento de água das chuvas (pequenas barragens, lagos naturais, cisternas) e conseguiu dar vida a um rio seco há mais de 60 anos. Com o renascimento do rio as pessoas regressaram às suas aldeias e retomaram o cultivo dos campos. Para que não se voltasse aos tempos da miséria, criou o “Parlamento do rio Arvari” constituído por representantes das aldeias atravessadas pelo rio com a finalidade de cuidar dele, gerir a sua água, decidir o que plantar ou como organizar a floresta existente.
Que exemplo tão distante (e não me refiro à distância geográfica) face ao que por cá se faz! Defendo a execução de um conjunto de medidas para a recuperação do rio Noéme e das aldeias ribeirinhas. Em primeiro lugar, como condição primordial e prioritária, o fim imediato de todas as descargas de águas residuais não-tratadas no seu leito. Com vista à despoluição da água deverão ser criados sistemas de bio-remediação (é uma técnica completamente natural) para descontaminar os troços que estão poluídos. Cabe aos poderes públicos locais e nacionais executar esta tarefa e pôr fim ao crime ambiental. As restantes tarefas estão nas mãos das populações: limpar e desobstruir o leito do rio e de todos os ribeiros que o alimentam para facilitar a livre circulação das suas águas; elaborar uma cartografia dos ribeiros, fontes e lençóis freáticos que, desde a nascente até à foz, vão ter ao Noéme; garantir a limpeza das suas margens, removendo as espécies secas, desmatando e podando as árvores; valorizar os espaços envolventes, reintroduzindo o mais possível (não só nas zonas ribeirinhas, mas em todo o lado) as espécies autóctones; desenvolver a agricultura biológica, eliminando o uso de fertilizantes ou pesticidas responsáveis pela contaminação dos lençóis freáticos; construir sistemas de retenção de água, valorizar e limpar os antigos açudes, para uso agrícola. Ao mesmo tempo que se cuida do rio, é necessária a recuperação do património material (constituído por moinhos, pontões, muros, noras) e imaterial (toda a tradição e a história da relação das pessoas com o rio). Está visto que este recurso não pode ser gerido pelos poderes públicos. Um “Parlamento do rio Noémi” faria falta para que as populações destas aldeias voltassem a tomar como seu este recurso e tivessem uma palavra a dizer quanto à sua gestão. Este rio precisa voltar a ser usado livremente pelas pessoas. As populações desta região precisam voltar ao Noémi, ouvir o seu silêncio e voltar a sonhar. Porque se o sonho desaparecer, mesmo que ainda haja meia dúzia de pessoas a habitar as nossas aldeias, estas estarão irremediavelmente perdidas.
Há no concelho da Guarda um conjunto de aldeias que têm como elemento comum o rio Noéme. Este rio nasce em Vale de Estrela e junta-se ao Côa, no Jardo, no concelho de Almeida. “Poucos sabem qual é o rio da minha aldeia (...) E por isso porque pertence a menos gente, / É mais livre e maior o rio da minha aldeia”: este verso de Alberto Caeiro reflecte o sentimento que estas gentes nutrem pelo Noéme, ou, usando a expressão corrente, “a Ribeira!”. Este é o pequeno rio, de uma pequena terra, poluído por pequenas pessoas a cobertos dos pequenos poderes. Tudo começou na pré-história do saneamento básico da Guarda em que este curso de água se transformou no bacio da cidade, num tempo em que isto era prática em quase todo o lado em Portugal. Hoje, no Portugal moderno, passados milhões de euros da União Europeia investidos em infra-estruturas de tratamento de águas residuais, continua a ser o despejo da indústria local. Um problema que urge resolver, uma vergonha que urge reparar.
Nos questionários mandados realizar pelo Marquês de Pombal aos párocos de Portugal em 1758 (ficaram conhecidos na historiografia como Memórias Paroquiais) lemos o que era o Rio Noeime (ou nas palavras poéticas do pároco do Rochoso, Noémi, remetendo para a personagem bíblica). Resumindo o conteúdo dos diversos textos é de realçar o que em comum disseram os inquiridos: o rio Noéme tinha muitos moinhos em uso, onde se moía trigo e centeio; as suas margens eram cultivadas e nas suas margens havia predominância de amieiros e de salgueiros; havia peixes em abundância (bordalos, sardas e enguias) nas suas águas. O Noéme do século XVIII era o Noéme da década de 70 do século XX. As mesmas vivências, os mesmos usos, as mesmas características físicas. O rio calou-se a partir daí e deixaram de se ouvir os seus sons característicos: o coaxar das rãs, o cantar dos guarda-rios, o som dos motores de rega a puxar água, a água a bater nas mós dos moinhos. Dizia o vigário Alexandre da Silva Pereira nas Memórias Paroquiais: “os povos usam livremente as suas águas”. Nos dias de hoje o rio é destruído por alguns e este património é retirado a todos. Não são livres as pessoas de usufruir e de viver o seu rio.
Mas afinal quanto vale um rio? O progresso, que na realidade trouxe qualidade de vida às populações e melhorou as condições sanitárias das nossas aldeias, também destruiu mais do que devia a paisagem. Os últimos trinta anos causaram um prejuízo irreparável nos terrenos, nas ribeiras, na biodiversidade... há coisas que não conseguiremos recuperar. Não falo sequer no património imaterial, nas tradições, na memória, na cultura que desaparece a cada idoso que parte. Este progresso que nos andam a vender fez com que a população das aldeias atravessadas pelo rio Noéme, nos três concelhos, diminuísse de 4274 habitantes (dados retirados dos Censos 2001) para 3786 (Censos 2011). Quanto tempo faltará para que este território se torne um deserto? Que estórias contarão estas pedras? Ultrapassámos todos os limites: barragens, torres eólicas (plantadas sem critérios que não sejam os economicistas nos nossos montes), alcatrão e mais alcatrão, urbanizações em cima dos nossos ribeiros e invadindo reservas naturais e agrícolas. As gerações mais novas já não caçarão gambozinos, sentirão o cheiro a alecrim e bela-luz, beberão água das nascentes, aprenderão a nadar nas ribeiras ou saberão sequer o nome das árvores.
James Salzman, um especialista norte-americano em políticas ambientais, sustenta que “a maior ameaça ao desenvolvimento é a escassez da água potável”. Temos a água potável como um bem garantido, de tal forma que até nos damos ao luxo de destruir este recurso. Rajandra Singh é um activista ambiental indiano. Numa região pobre, despovoada e com um rio seco algures na Índia, pôs em prática as técnicas antigas de armazenamento de água das chuvas (pequenas barragens, lagos naturais, cisternas) e conseguiu dar vida a um rio seco há mais de 60 anos. Com o renascimento do rio as pessoas regressaram às suas aldeias e retomaram o cultivo dos campos. Para que não se voltasse aos tempos da miséria, criou o “Parlamento do rio Arvari” constituído por representantes das aldeias atravessadas pelo rio com a finalidade de cuidar dele, gerir a sua água, decidir o que plantar ou como organizar a floresta existente.
Que exemplo tão distante (e não me refiro à distância geográfica) face ao que por cá se faz! Defendo a execução de um conjunto de medidas para a recuperação do rio Noéme e das aldeias ribeirinhas. Em primeiro lugar, como condição primordial e prioritária, o fim imediato de todas as descargas de águas residuais não-tratadas no seu leito. Com vista à despoluição da água deverão ser criados sistemas de bio-remediação (é uma técnica completamente natural) para descontaminar os troços que estão poluídos. Cabe aos poderes públicos locais e nacionais executar esta tarefa e pôr fim ao crime ambiental. As restantes tarefas estão nas mãos das populações: limpar e desobstruir o leito do rio e de todos os ribeiros que o alimentam para facilitar a livre circulação das suas águas; elaborar uma cartografia dos ribeiros, fontes e lençóis freáticos que, desde a nascente até à foz, vão ter ao Noéme; garantir a limpeza das suas margens, removendo as espécies secas, desmatando e podando as árvores; valorizar os espaços envolventes, reintroduzindo o mais possível (não só nas zonas ribeirinhas, mas em todo o lado) as espécies autóctones; desenvolver a agricultura biológica, eliminando o uso de fertilizantes ou pesticidas responsáveis pela contaminação dos lençóis freáticos; construir sistemas de retenção de água, valorizar e limpar os antigos açudes, para uso agrícola. Ao mesmo tempo que se cuida do rio, é necessária a recuperação do património material (constituído por moinhos, pontões, muros, noras) e imaterial (toda a tradição e a história da relação das pessoas com o rio). Está visto que este recurso não pode ser gerido pelos poderes públicos. Um “Parlamento do rio Noémi” faria falta para que as populações destas aldeias voltassem a tomar como seu este recurso e tivessem uma palavra a dizer quanto à sua gestão. Este rio precisa voltar a ser usado livremente pelas pessoas. As populações desta região precisam voltar ao Noémi, ouvir o seu silêncio e voltar a sonhar. Porque se o sonho desaparecer, mesmo que ainda haja meia dúzia de pessoas a habitar as nossas aldeias, estas estarão irremediavelmente perdidas.
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