O que fazer com estas aldeias?
Fleury-devant-Douaumont é uma aldeia francesa situada na Lorena que foi completamente destruída numa batalha na Primeira Guerra Mundial. Não foi reconstruída e é hoje um bosque, com presidente nomeado mas sem habitantes. Os visitantes que ali vão procuram memórias. A Guarda é um concelho situado na zona centro do país, na prosa de Miguel Torga aplicada à Beira mas que considero oportuna também neste caso, “à roda, sempre à roda da força polarizadora: - a Estrela”. Vindo de Lisboa, ao atravessar os túneis da Gardunha, abre-se uma porta e o visitante é envolvido num abraço de boas-vindas pela Serra da Estrela e entra numa tela pintada do amarelo das maias na Primavera e do cinzento do robusto granítico todo o ano. Do alto da Serra, o concelho expande-se em direcção a Espanha, conferindo-lhe uma heterogeneidade social e física muito interessante. Visitar as aldeias da Guarda hoje em dia é ir a locais cada vez mais soturnos, mais vazios, onde já não há ninguém que mande entrar, antes ainda de perguntar quem é. Estas aldeias não vão desaparecer devido à Guerra, pelo menos na estrita definição do termo. Vão tornar-se mais dia, menos dia lugares-fantasma porque perderam a batalha demográfica. Por cada aldeia que morre, é Portugal que se torna um país um pouquinho mais pequeno.
Não são de hoje os movimentos migratórios de saída. No apogeu das Descobertas Marítimas queixava-se Sá de Miranda “ao cheiro desta canela o Reino se despovoa”. Ao longo do século XX, primeiro para o Brasil, depois para a Europa, muita gente deixou estas aldeias, mas os índices de natalidade eram claramente superiores aos actuais. Na maioria das pessoas que emigravam havia o objectivo de regressar nem que fosse a cada ano por alturas do Verão. Isso aconteceu porque raras foram as épocas em que houve de facto prosperidade e riqueza nesta região e mais escassas ainda as vezes em que os governantes olharam para este pedaço de Portugal sem ser para cobrar impostos. Houve laivos de modernidade quando, em finais do século XIX, o caminho-de-ferro atravessou estas aldeias (e um medo tal, ainda vivo na tradição oral, quando a primeira máquina a vapor atravessou aqueles campos, bufando fumo negro e espesso, ruidoso como as trombetas do Inferno anunciado nos púlpitos ignorantes das igrejas). Beneficiando das particularidades climatéricas que possui, a Guarda foi, durante anos, local importante de tratamento da tuberculose no Sanatório Sousa Martins, inaugurado pelo rei Dom Carlos e pela rainha Dona Amélia. Num concelho tradicionalmente agrícola, houve algum emprego regular e conhecimento quando se instalou a indústria automóvel. Numa primeira fase, os dinheiros da CEE permitiram o saneamento básico das aldeias, mas ao mesmo tempo a destruição da débil agricultura existente. Numa segunda fase, a construção sem qualquer critério de polidesportivos em todas as freguesias e salões de festa fechados por não haver quem os dinamizasse. O que aconteceu nos últimos trinta anos, aqui e ali disfarçado de alguma prosperidade, foi a destruição dos nossos recursos, da paisagem e das nossas potencialidades. Nunca ninguém cuidou de desenvolver o que havia, criar valor para fixar as pessoas, quanto mais pensar e preparar o futuro.
Estima-se que cerca de 20% do território português esteja despovoado ou desertificado e que 40% está exposto a este problema. Não nos iludamos. O concelho da Guarda contribui significativamente para estes números: o pouco de floresta autóctone que havia ardeu; dos três rios (Zêzere, Mondego e Noémi) que nascem no concelho, um é alvo continuado e regular de descargas poluentes; os campos agrícolas, completamente improdutivos, à mercê de legislação (vejam-se as recentes iniciativas sobre as sementes, os eucaliptos ou os baldios) que mais do que um retrocesso ambiental constitui o deitar da última pá de terra na sepultura onde jazem as nossas aldeias. Se no entender de Eduardo Lourenço “o português médio conhece mal a sua terra (…) é um facto que releva de um mais genérico comportamento nacional, o de viver mais a sua existência do que compreendê-la”, por outro lado – e o que me dá alguma esperança de mudança – é que esta terra é habitada por uma raça de gente que sempre lutou e venceu a adversidade: onde havia barrocos lavrou fundo com sangue e suor e encontrou terra, contrabandeou para pôr o comer à mesa em casa, emigrou mas na sua terra construiu casa e a ela regressou assim que pôde. E, sobretudo não perdeu o carácter, não curvou a espinha e nunca deixou que lhe pusessem a pata em cima.
Fleury-devant-Douaumont é uma aldeia francesa situada na Lorena que foi completamente destruída numa batalha na Primeira Guerra Mundial. Não foi reconstruída e é hoje um bosque, com presidente nomeado mas sem habitantes. Os visitantes que ali vão procuram memórias. A Guarda é um concelho situado na zona centro do país, na prosa de Miguel Torga aplicada à Beira mas que considero oportuna também neste caso, “à roda, sempre à roda da força polarizadora: - a Estrela”. Vindo de Lisboa, ao atravessar os túneis da Gardunha, abre-se uma porta e o visitante é envolvido num abraço de boas-vindas pela Serra da Estrela e entra numa tela pintada do amarelo das maias na Primavera e do cinzento do robusto granítico todo o ano. Do alto da Serra, o concelho expande-se em direcção a Espanha, conferindo-lhe uma heterogeneidade social e física muito interessante. Visitar as aldeias da Guarda hoje em dia é ir a locais cada vez mais soturnos, mais vazios, onde já não há ninguém que mande entrar, antes ainda de perguntar quem é. Estas aldeias não vão desaparecer devido à Guerra, pelo menos na estrita definição do termo. Vão tornar-se mais dia, menos dia lugares-fantasma porque perderam a batalha demográfica. Por cada aldeia que morre, é Portugal que se torna um país um pouquinho mais pequeno.
Não são de hoje os movimentos migratórios de saída. No apogeu das Descobertas Marítimas queixava-se Sá de Miranda “ao cheiro desta canela o Reino se despovoa”. Ao longo do século XX, primeiro para o Brasil, depois para a Europa, muita gente deixou estas aldeias, mas os índices de natalidade eram claramente superiores aos actuais. Na maioria das pessoas que emigravam havia o objectivo de regressar nem que fosse a cada ano por alturas do Verão. Isso aconteceu porque raras foram as épocas em que houve de facto prosperidade e riqueza nesta região e mais escassas ainda as vezes em que os governantes olharam para este pedaço de Portugal sem ser para cobrar impostos. Houve laivos de modernidade quando, em finais do século XIX, o caminho-de-ferro atravessou estas aldeias (e um medo tal, ainda vivo na tradição oral, quando a primeira máquina a vapor atravessou aqueles campos, bufando fumo negro e espesso, ruidoso como as trombetas do Inferno anunciado nos púlpitos ignorantes das igrejas). Beneficiando das particularidades climatéricas que possui, a Guarda foi, durante anos, local importante de tratamento da tuberculose no Sanatório Sousa Martins, inaugurado pelo rei Dom Carlos e pela rainha Dona Amélia. Num concelho tradicionalmente agrícola, houve algum emprego regular e conhecimento quando se instalou a indústria automóvel. Numa primeira fase, os dinheiros da CEE permitiram o saneamento básico das aldeias, mas ao mesmo tempo a destruição da débil agricultura existente. Numa segunda fase, a construção sem qualquer critério de polidesportivos em todas as freguesias e salões de festa fechados por não haver quem os dinamizasse. O que aconteceu nos últimos trinta anos, aqui e ali disfarçado de alguma prosperidade, foi a destruição dos nossos recursos, da paisagem e das nossas potencialidades. Nunca ninguém cuidou de desenvolver o que havia, criar valor para fixar as pessoas, quanto mais pensar e preparar o futuro.
Estima-se que cerca de 20% do território português esteja despovoado ou desertificado e que 40% está exposto a este problema. Não nos iludamos. O concelho da Guarda contribui significativamente para estes números: o pouco de floresta autóctone que havia ardeu; dos três rios (Zêzere, Mondego e Noémi) que nascem no concelho, um é alvo continuado e regular de descargas poluentes; os campos agrícolas, completamente improdutivos, à mercê de legislação (vejam-se as recentes iniciativas sobre as sementes, os eucaliptos ou os baldios) que mais do que um retrocesso ambiental constitui o deitar da última pá de terra na sepultura onde jazem as nossas aldeias. Se no entender de Eduardo Lourenço “o português médio conhece mal a sua terra (…) é um facto que releva de um mais genérico comportamento nacional, o de viver mais a sua existência do que compreendê-la”, por outro lado – e o que me dá alguma esperança de mudança – é que esta terra é habitada por uma raça de gente que sempre lutou e venceu a adversidade: onde havia barrocos lavrou fundo com sangue e suor e encontrou terra, contrabandeou para pôr o comer à mesa em casa, emigrou mas na sua terra construiu casa e a ela regressou assim que pôde. E, sobretudo não perdeu o carácter, não curvou a espinha e nunca deixou que lhe pusessem a pata em cima.
O ultimo paragrafo diz tudo "é que esta terra é habitada por uma raça de gente que sempre lutou e venceu a adversidade:" temos que continuar a lutar
ResponderEliminarJoaquim Vargas