O rio corria
no seu leito com a fluidez e a nostalgia de quem segue uma velha rotina, certo
de que o seu percurso, se o não o levava a um sítio melhor, o levava, pelo
menos, a algum sítio. Era Domingo, e a razão que me tinha levado lá, ao rio,
prendia-se com o facto de o tempo convidar a isso mesmo: um passeio.
O céu
estava particularmente tempestuoso, o que impedia a uniformidade das suas
cores. Em vez disso, o seu azul habitual de Verão misturava-se com o cinzento
das nuvens, dando origem ao branco que, é como quem diz, ao nada. Dessa forma,
nessa tarde sonolenta e fria, lá no alto, o nada misturava-se com o tudo, o
escuro com o claro, e a noção mais exacta que se podia ter desse efeito, ainda
que, mesmo assim, fosse tão distante da realidade, era através do rio. As suas
águas, que saltitavam através das pedras, formando remoinhos e pequenas
correntes, estavam com uma cor escura e triste, natural desta época do ano.
O
clima, agressivo e inconstante, era mais do que expectável. O vento, que
soprava desordenadamente de um lado para o outro, fazia-se ouvir através de
estrondos de massas de ar que, de vez em quando, rebentavam no vazio. Ninguém
tinha trazido guarda-chuva, mas isso era um risco consciente que corríamos. As
nuvens, imponentes e inacessíveis no céu, com os contrastes de branco e preto
que evidenciavam as suas formas ainda mais imponentes e inacessíveis do que a
sua localização, ameaçavam desfazer-se a qualquer momento, e as gotas de água
fria, que eu imaginava já a cair, fizeram-me estremecer dentro do meu casaco.
Foi quando o meu pai disse:
–
Sabes, quando tinha a tua idade, vinha para aqui guardar as vacas. E, no Verão,
costumávamos pescar aqui peixes. E ainda me lembro quando a água do rio passou
por cima daquela ponte e daqueles barrocos.
–
Acredito, pai. – disse.
As
memórias, perdidas algures na fronteira entre o tempo e o espaço são, de facto,
um bom sítio e uma boa altura para se estar, e era aí que o meu pai estava.
Sozinho, numa linha de pensamento a que só ele tinha acesso, recordava outros
tempos, melancolicamente tão melhores do que os de agora. Mas as memórias do
meu pai, tão longínquas e agrestes, não faziam de todo sentido para mim porque,
apesar daquele cenário cinzento que a natureza nos oferecia naquela tarde de
Domingo, com os tapetes de folhas que, de vez a vez, nos faziam pôr os pés em
locais incertos, com as árvores a esvoaçarem ao ritmo estonteante do vento e
com algum pássaro que, perdido na vida, ou demasiado absorto nela, levantava
voo, a verdade é que o rio estava poluído. Sem dramatismos. Sem metáforas.
Havia espuma branca espalhada pelas suas águas e, nos sítios mais baixos, essa
mesma espuma formava uma substância viscosa e verde, que condizia em cor com a
natureza que a circundava mas da qual o meu pai não se lembrava na sua
infância.
Penso que não vale a
pena enfatizar o porquê dessa situação. Confesso também que os
assuntos políticos e burocráticos que lhe estão inerentes fogem à minha compreensão
e interesse. Mas os factos estão lá para quem os quiser ver.