"Diana tinha a minha idade. A mesma idade. Nascemos em 1961.
Os dois. Trinta e seis anos. Se ela tinha a minha idade, tinha eu a idade dela?
E que fazer agora com a «nossa» idade? A princesa morreu, a fugir de abutres, segundo se conta. Também eu fujo dos abutres há vários anos. Há tantos que já não sei se não desconte esses anos na minha idade. Os meus abutres são outros, diferentes, de olhos meigos e unhas polidas.
Por outro lado, pergunto-me se Diana não gostava de ser perseguida por aqueles abutres. Se, de vez em quando, não os convidava para a sua mesa. A verdade é que Diana morreu. Com a minha idade. A mesma que, apesar de tudo, não era igual.
Irrito-me quando um amigo, que não via há várias idades - Diana tinha a minha idade -, que me bate no pescoço, ao de leve, e declara: «O sistema dá cabo de ti!». Fiquei sem saber o que dizer. Que sistema? O sistema nervoso? A idade? Não. A pessoa que me bate na nuca, é um amigo certo. Um amigo que tem uma casa que é um refúgio. Um eremita votado ao futebol pela televisão. Que apenas sai do tugúrio para avisar os amigos de que o «sistema dá cabo» deles. Como eu gosto deste homem!! Não conheço ninguém mais generoso que ele. Vem com estas tretas do sistema mas não sei propriamente o que quer dizer. Saberá ele, ele que tem o dobro da minha idade? Diz sistema como podia dizer «a vida», «o trabalho», «esta merda» ou «a idade». O «sistema» deu cabo de Diana, diria o meu amigo, aquele que foi destacado para me irritar no dia em que uma rapariga da minha idade morreu.
Diana tinha a minha idade. Há muitos anos atrás, teria eu doze anos (os mesmos de Diana, que não sei o que andaria a fazer), fugi de casa, farto de ficar preso às mesas por uma linha de costura. Por uma linha invisível, digo mais tarde num poema.
Cortei a linha com os dentes. Ninguém o sabia, não queria voltar mais àquela casa. Avanço, como sempre sem olhar para trás, em direcção ao «objectivo» mil vezes desenhado. No rio Noéme, que agora é o esgoto da cidade, havia uma pequena ilhota, dez passos, duas árvores. Nesse dia declarei independente a ilha «Independente», assim chamada em louvor da independência. Comecei por hastear uma bandeira negra na árvore mais alta (como eu gostava de continuar a hastear bandeiras negras?!!).
Durante sete dias aquele território foi meu, só de liberdade feito.
A minha mãe, cúmplice, enviava-me mantimentos através de uma pequena jangada puxada à corda. Fiquei ali, enfrentando o frio e as «tempestades», uma semana. O meu pai terá achado graça ao gesto heróico de um rapaz da minha idade. Diana tinha a minha idade. Depois, parece que todos se cansaram. De me alimentar.
De dizer que na minha idade aquilo até tinha graça. E eu voltei para casa, bandeira negra guardada para a próxima vez.
Diana tinha a minha idade. Quinze anos. Sonhava, provavelmente, em ser princesa. Nessa altura, eu tinha um hábito que, a custo, perdi. Entrava num qualquer automóvel, tinha predilecção por Mercedes, e punha-o a funcionar. Dominava a técnica na perfeição, apesar de ter aprendido sem mestre. Depois, chegado ao sítio apropriado, empurrava o carro, com um enorme prazer, de um precipício qualquer. E ficava a vê-lo rebolar-se por ali abaixo até se incendiar. Fiz isto com, pelo menos, trinta Mercedes. Então a família mandou-me (antigamente era a pedido) para um reformatório. Para aprender a não ter aquela idade. Diana tinha a minha idade; conheceria ela, na altura, a palavra reformatório? Nunca me ouvirão contar o que se passou naquela primeira noite. Noite de dores, de suor alheio entranhado na minha pele. Depois, sabendo quem mandava e quem obedecia (eu obedecia a um tipo da minha idade, com o dobro do meu corpo), integrei-me. Ai que bonita palavra esta!: «Integrei-me».
Filhos da puta! Qual integração, qual carapuça, qual «sistema??!!. Violência e medo. Muito medo, Diana. Diana tinha a minha idade. Aprendi um ofício, o de marceneiro, que muito útil se tem revelado. Pertenci à banda, a célebre banda do reformatório. Tocava sousafone, às vezes nem sequer podia com ele. No Verão, andávamos de romaria em romaria. O pior era quando nos metiam na cela de castigo, nus, um arganel no nariz.
Também aí, num dia memorável, hasteei a minha bandeira negra.
Fui chicoteado dez vezes.
Diana tinha a minha idade. Não conheceu o meu avô Agostinho, pastor. Íamos para os campos de tojos e de pedras que pareciam altares. Dormíamos numa casa de palha. Não tínhamos medo dos lobos nem do «sistema». É que todas as noites o meu avô hasteava a bandeira negra. O avô, que tinha a mesma cara de Agostinho da Silva (não estou a inventar), contava-me histórias de arrepiar. No entanto, depois, dormíamos profundamente.
Nessas alturas, eu nem sequer tinha idade."
Esta crónica de Américo Rodrigues foi publicada no jornal Terras da Beira na edição de 04 de Setembro de 1997 e está disponível aqui.