“No cimo de monte
inhospito,
junto da nevada Estrella,
se ergue uma cidade. É n’ ella
que
vamos, leitor entrar.
É fria, ventosa
e húmida
feia, denegrida e forte,
que o reino, contra a má sorte,
era obrigado a guardar."
Tomás Ribeiro
Vivemos tempos de
crise. Dizem-nos isso os economistas; dizem-nos isso os políticos; diz-nos isso
a opinião publicada. Interiorizámos. Também se vivia em crise quando em 1384,
Dom Álvaro Gil Cabral se recusou entregar as chaves da Cidade aos castelhanos.
Também se vivia em crise quando as tropas francesas invadiram e pilharam a
Cidade. Vivia-se em crise quando, numa Guarda paroquial e conservadora, José
Augusto de Castro lutava por uma República (e Carolina Beatriz Ângelo exigia
apenas: Votar!). Em todos os períodos de crise (e este é-o, e não só económica
ou financeira) existiram sempre homens e mulheres capazes de intervir, liderar
e superar as dificuldades. Não será diferente agora.
A Guarda da
actualidade vive resignada, apática e sem esperança num qualquer e
incompreensível sentimento de inferioridade face a cidades vizinhas. Como que
assumindo um qualquer medo de existir (ou pior, uma vergonha de existir).
Desistindo de ser a Capital e desresponsabilizando-se da sua condição. Essa
liderança foi-lhe confiada por Dom Sancho I quando em 1199 atribuiu a Carta de
Foral e foi reforçada em 1202 com a transferência da Diocese Egitaniense.
Aceitar ser a Capital não é uma escolha que a Guarda possa fazer: é uma obrigação
histórica. Tirando partido de uma posição geográfica excepcional, tornou-se por
essa altura um centro administrativo, comercial e de defesa de grande
importância. Já no século XX não podemos esquecer o papel importante que teve
no tratamento da tuberculose em Portugal. A 18 de Maio de 1907 foi inaugurado o
Sanatório Sousa Martins, o primeiro do país. O estudo das potencialidades do
clima e ar da Guarda no tratamento dessa doença começou no século XIX na
célebre expedição científica à Serra da Estrela. Mas a Guarda da actualidade
parece de costas voltadas para a Serra. Incompreensivelmente de costas voltadas
para “a força polarizadora da Beira” nas palavras de Miguel Torga. Quando a
Guarda se menoriza está a diminuir todo um território geográfico, social e
afectivo que espera muito dela.
A Guarda da
actualidade tem alguns momentos de criatividade e de arrojo que a colocam no
lugar onde deve (e pode) estar e às vezes mais além ainda. Mas são apenas
rasgos na manta pesada de resignação e de conservadorismo que cobre a Cidade.
Uma manta que desconfia do que é bem feito como se de pecado se tratasse. Uma
manta que pesa demasiado nos ombros dos Guardenses em vez de os abrigar. Esses
momentos singulares têm de ser a regra, a matriz e o motor da Guarda. Têm de ser
a toalha de linho. Porque a Guarda até tem a originalidade de ter tido um
criativo à frente dos seus destinos. Do doutor Alberto Diniz da Fonseca
(presidente da Câmara Municipal entre 1947 e 1953) conhece-se o exagero: “Foi
na Guarda que nasceu o Império Romano” ou “São Francisco de Assis esteve na
Guarda”. Dizer “Até o Anjo é da Guarda”, mais do que um delírio bairrista é um
delírio de imaginação (e nos dias de hoje de marketing e de comunicação) que
deveria ser a marca da Cidade. A Guarda da actualidade não tem de ter pudor ou
vergonha de pronunciar a palavra - Cultura! E tem essa tradição: a Sé Catedral
acolheu ao longo dos tempos os melhores compositores da época (lembro João José
Baldi) e foram muitos os poetas que cantaram a Cidade.
Por vezes a falta de
imaginação não é mais que falta de memória. Para se afirmar, a Guarda tem de
resolver os permanentes equívocos em que vive. Porque está tão distante da
Serra da Estrela? Porque não promove o seu fantástico clima? Porque não
valoriza o Ambiente, o Património e a História? Porque não acarinha a Cultura?
Porque não tira partido da sua extraordinária localização geográfica e
estratégica para atrair investimentos? A Guarda tem os recursos para
ultrapassar o momento de crise que vivemos. Não pode continuar a adiar o
futuro. Mas temos a certeza, relembrando o nosso Eduardo Lourenço, que seja o
que for que aí venha, para o ano ainda haverá Guarda.
Márcio
Fonseca
(Texto publicado no GuardaViva - Boletim Municipal comemorativo dos 813 anos da Cidade da Guarda e disponível aqui para download)
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