sábado, 10 de dezembro de 2011

Portagens para ver o rio Noéme (1)

Quem a partir de agora quiser vir à Guarda assistir a um bom espectáculo no Teatro Municipal da Guarda (TMG), apreciar o rio Noéme (despoluído, espera-se no próximo ano) ou comer enchidos da região terá de pagar 38 euros e 60 cêntimos mais combustível. Os empresários sediados na região que queiram a partir de agora trazer a Lisboa as boas batatas, os bons enchidos e o bom queijo da Serra (os espectáculos do TMG e o rio Noéme não podem sair da Guarda) se o fizerem com veículos de classe 2 custará sensivelmente o dobro.

O que há em comum entre as portagens da A23 (e A25 e A24), a supressão de linhas de comboio ou a poluição do rio Noéme? Um total desinvestimento nas regiões encostadas a Espanha em favor das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e a política de concentração da população (e com isso os serviços e as infra-estruturas) em duas zonas do país. Guarda e Lisboa pertencem ao mesmo país e por isso é natural que os impostos pagos por todos sejam distribuídos pelo todo nacional. Porque a Guarda tem menos população ou contribui com menos percentagem de impostos para o Orçamento de Estado não significa que valham menos ou que por isso não têm direito ao desenvolvimento. Caso contrário, não faria sentido que os impostos gerados na Guarda fossem utilizados em hospitais de Lisboa ou redes de metropolitano que não são usados pela população da Guarda. A Guarda também paga impostos que são usados em frotas automóveis ministeriais.

Dos Governos que me lembro, o único que teve uma ideia de consistência do território português foi o do engenheiro António Guterres. Onde o professor Cavaco Silva e o seu ministro das estradas deixou um IP5 mal amanhado e extremamente inseguro, o governo socialista fez por cima (neste caso inevitavelmente porque estava mal feito) a A25. A A23 foi feita por cima de troços do IP2 e da estrada nacional que ligava a Guarda a Lisboa pela Beira Baixa. Critica-se hoje o facto de se terem construído estradas em cima das supostas vias alternativas. Num caso e noutro, nenhuma das vias que existia seria hoje uma alternativa própria de um país da Europa Ocidental. Noutros casos, eliminaram-se completamente os itinerários principais e complementares em favor de um novo-riquismo-pedante-próprio-de-quem-não-vai-pagar e fizeram-se auto-estradas (várias até com a mesma origem e destino. E essas têm de ser pagas e se calhar alguns decisores deviam pagar com os costados na cadeia. Até essas são pagas com impostos). A A23, que percorro com muita frequência, é uma estrada estruturante que liga a Europa a Lisboa e no contexto das trocas comerciais atrevo-me a dizer uma das mais importantes vias da Península Ibérica. É uma auto-estrada de qualidade média, não é nenhum luxo, mas é a suficiente para as necessidades actuais. Hoje é a mais cara do país.

Os que defendem o princípio do utilizador-pagador merecem o meu respeito e defendem o seu argumento com base no custo e no dinheiro. Esquecem-se que a maior parte da obra foi paga com fundos comunitários destinados a desenvolver regiões ditas "deprimidas" (a terminologia é infeliz, mas é essa a usada) numa altura em que a UE era uma ideia política de união entre os povos e não só números. São argumentos muito estimáveis mas se a política fossem só números então não havia necessidade de eleições e os decisores seriam seleccionados e contratados como se estivéssemos a falar de cargos superiores de empresas. Se fosse assim fechavam-se as aldeias e a meia dúzia de pessoas que lá vivem seriam deslocadas para bairros sociais nos arredores das cidades. Era mais barato. E não se despoluía o rio Noéme. Para quê? Era mais barato. E vendia-se a Sé Catedral, o TMG e a Torre de Menagem a chineses, brasileiros ou russos.

Dos suburbanos das áreas metropolitanas que vociferam boçalmente que não pagam o que não usam tenho pena. Se saíssem mais do seu subúrbio (sobretudo mental) espaireciam a cabeça e viam novas realidades. Tenho-lhes a dizer que vão deixar de ter em casa alguns bons produtos ou então pagá-los muito mais caros (ainda me dizem que não utilizam as auto-estradas?).

A partir de agora vai pagar-se mais para ir da Guarda a Lisboa do que da Guarda a Madrid. No contexto de uma integração de regiões europeias não há mal nenhum nisso. Pode até ser mais vantajoso para uma empresa da Guarda comercializar para Espanha do que para Portugal. As tapas vão ser feitas com enchidos da região da Guarda e com queijo da Serra. Não há mal nenhum nisso, bem pelo contrário.

Nos túneis da A23, na Gardunha ou no Barracão, podem ser colocadas cancelas e cobrar portagem extra para se entrar na Beira (assim como se fazia na Idade Média). Mas só a políticos e decisores mal amanhados. Não há mal nenhum nisso, antes pelo contrário.


Nota 1: Escrevia em cima que os espectáculos do TMG não se podiam levar para Lisboa. É pouco rigoroso. A partir de hoje será possível. Veja como, aqui.

Nota 2: Pode saber-se mais sobre a Torre de Ucanha, na foto, consultando este link.

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